O atelierista é responsável pelo diálogo entre a arte e a cultura pedagógica, ao guiar as crianças por novas vivências estéticas e documentar as experiências.
O papel desse educador foi um dos temas discutidos na VI Jornada de Educação Infantil, realizada em 3 de outubro pelo Observatório da Cultura Infantil (OBECI), em parceria com a Pós Educação Unisinos.
O evento 100% online teve curadoria e mediação do pesquisador e formador do Instituto para Inovação em Educação da Unisinos, Paulo Fochi, com o apoio da jornalista Débora Bresciani. Foram apresentados os cases das escolas Ateliê Carambola e Thema Educando, além de mesas redondas com os convidados:
- Cristian Fabbi, presidente da Reggio Children
- Mara Davoli, consultora da Fundação Reggio Children
- Mitchel Resnick, professor de Pesquisa de Aprendizagem no MIT Media Lab
Em uma entrevista exclusiva para o evento, Mara Davoli comentou o papel atual do atelierista nas escolas. Davoli atuou como atelierista entre 1973 e 2007, trabalhando lado a lado com Loris Malaguzzi. Hoje atua como consultadora da Reggio Children, centro internacional de difusão da abordagem Reggio Emilia.
Confira as principais ideias apresentadas por Mara Davoli em conversa com Paulo Fochi. As perguntas e respostas foram adaptadas para dar mais clareza à leitura.
As origens e o papel atual do atelierista
A consultora da Reggio Children Mara Davoli e o professor Paulo Fochi na VI Jornada de Educação Infantil.
Paulo Fochi: Como foi sua aproximação com o campo da arte e como você trouxe seu trabalho para as escolas municipais de Reggio Emilia?
Mara Davoli: Minha aproximação com a arte foi inesperada e um pouco discutida em família. As antigas escolas de Ensino Médio que eu frequentava focavam em disciplinas clássicas, como latim e italiano, e meus professores queriam que eu continuasse nessa estrada. Mas eu tive um professor de Educação Artística muito bom que me estimulou a seguir com a paixão pela cultura humanista.
Então eu comecei minha jornada em uma escola de arte da minha cidade, mas eu era muito jovem, tinha 19 anos na época. Não queria estudar na Academia de Belas Artes, mas tinha muito interesse pela arquitetura e pela história da arte. Naquele momento, um grupo de jovens arquitetos abriu um estúdio na minha cidade e fui trabalhar lá. Pensei: “Vou tirar um tempo para entender o que eu quero fazer quando crescer.”.
Havia um jovem arquiteto nesse grupo que estava projetando a creche Arcobaleno, com Loris Malaguzzi. Eu colaborei no projeto, apesar de ainda ter pouca maturidade artística, e lá conheci a experiência Reggio Emilia. Eu não sabia nada sobre projetos para creches nem sobre pedagogia. Mas quando me deparei com essas ideias e conheci Malaguzzi, tive uma grande curiosidade sobre o assunto. São os acasos da vida.
Então houve um concurso público para essa “figura” com um nome inventado, o atelierista – em italiano a palavra “atelierista” não existe. Estava convencida de que não seria chamada, mas, como estava tirando um tempo para mim, não vi problemas em prestar o concurso. E agora estou aqui.
Paulo Fochi: A figura do atelierista nasceu dentro das escolas municipais de Reggio Emilia e você foi um dos personagens do começo dessa história. Quais eram os principais desafios quando você começou seu trabalho?
Mara Davoli: O primeiro era como colocar a cultura pedagógica e a artística em diálogo. Este era um pilar que estava imediatamente presente no projetode Reggio Emilia. E, antes mesmo de Malaguzzi, já havia a ideia de colegialidade, que te ajudava a ter um diálogo, um confronto. Havia conflitos de ideias apaixonados no início, ainda mais por sermos todas mulheres jovens no grupo de trabalho em que comecei.
Outra questão estava mais relacionada às linguagens artísticas. Tivemos que ler livros, como o de Bosch sobre criatividade, e poemas pedagógicos indicados por Malaguzzi, como Anton Makarenko e Célestin Freinet. Também estudamos sobre teoria das cores, mas isso não impediu que houvesse uma certa desorientação no início entre a teoria e a descoberta do “como”.
Por exemplo, Viktor Lowenfeld sugere que se comece pelas cores primárias e prossiga para as outras gradativamente quando estiver trabalhando com crianças pequenas. Então, em uma manhã, uma menina em frente ao carrinho de tintas me diz: “Mara, não tem fúcsia!”. Eu respondi: “Hoje não tem, mas amanhã você vai encontrá-la.”. Foi um belo desafio.
O início da experiência de Reggio Emilia não foi fácil nem mesmo do ponto de vista da gestão pública. Havia problemas econômicos, sociais e políticos. Malaguzzi queria levar para a região outras experiências pedagógicas que estavam nascendo na Itália, em especial na Toscana. Ele também tinha a responsabilidade de prestar contas para a cidade, que investia no projeto mesmo com dificuldades do ponto de vista econômico.
A primeira exposição [“L’occhio se salta il muro”, realizada em 1981] foi uma forma de mostrar que algo positivo estava sendo construído. O objetivo era alimentar-se da cultura social e política daquele tempo, mas também abrir as portas para a comunidade testemunhar o que estava sendo feito.
É um exercício de democracia muito difícil, pois, no momento em que você se torna legível, você se abre para o ponto de vista do outro, para as críticas.
Exposição de trabalhos desenvolvidos por crianças em escolas de Educação Infantil que seguem a abordagem Reggio Emilia. Reprodução/Reggio Children.
Paulo Fochi: Essa exposição foi importante para justificar o papel do atelierista. Acontece algo semelhante hoje no Brasil, algumas escolas contam com esse profissional e sentem a necessidade de justificar sua presença...
Mara Davoli: A exposição também serviu para apresentar, sobretudo, esse novo modo em que não só quem trabalha com crianças fala sobre elas, mas as incentiva a falarem. A questão é colocar em diálogo o mundo da infância e o dos adultos, tornando-o visível a partir da palavra.
A exposição “L’occhio se salta il muro” propôs isso. Houve uma escrita de uma nova forma pedagogia, feita por professores universitários, pedagogos e educadores.
O próprio título da exposição foi um outro aprendizado. Malaguzzi dizia que dar um nome significa comunicar um argumento relevante, pois carrega conceitualmente um significado. “L’occhio se salta il muro” [“Os olhos saltam o muro”, em tradução livre para o português] diz muita coisa.
A imagem da capa do catálogo dessa exposição também foi motivo de muita discussão. Ela é absolutamente metafórica: a sombra de duas crianças com um par de asas de papel, como se fossem pombos.
Tínhamos uma grande responsabilidade na escolha do título e das imagens, pois deveríamos comunicar uma ideia não só sobre a criança, mas da infância como um todo.
Paulo Fochi: Em 1986 a exposição muda de nome para “Il cento linguaggio dei bambini” [“As cem linguagens da criança”]...
Mara Davoli: Isso. A primeira mostra tratou principalmente sobre a percepção visual e trazia a visão do atelierista, que colocava em diálogo a cultura artística com a pedagogia. Era também um estudo sobre os textos de Rudolf Arnheim e da Gestalt. Foi feita uma proposta de uma nova didática da vida cotidiana.
A exposição “Il cento linguaggio dei bambini” foi uma evolução natural. O catálogo da exposição “L’occhio se salta il muro” se tornou um documento público, consultado por outros estudiosos, que o colocaram em contato com outras didáticas cotidianas e outras linguagens. Depois apareceram as primeiras pesquisas sobre observação e documentação.
Paulo Fochi: Após décadas de trabalho como atelierista, você observou diversas transformações no papel desse educador. Qual seria o papel do atelierista hoje?
Mara Davoli: Tive a oportunidade de conhecer muitas realidades diferentes, nos Estados Unidos, na América Latina e, sobretudo, no Brasil. Há dez anos, estive em Belo Horizonte e conheci lugares muito vulneráveis, onde encontrei a força de uma pesquisa estética realiza em condições realmente difíceis.
Essa experiência me ajudou a ser mais consciente como atelierista que atua em um lugar privilegiado, mas também a reformular e contextualizar cânones estéticos no campo educacional.
O atelierista hoje deve, primeiro, pesquisar frequentemente novas expressões artísticas para manter um conhecimento sobre a contemporaneidade. É preciso pesquisar uma cultura em que a arte o ajude a estar em sintonia com as vidas dos jovens de hoje. Ao mesmo tempo, o atelierista deve buscar a formação de quem estuda pedagogia.
Paulo Fochi: Ouvimos as pessoas falarem sobre “linguagem” de uma forma confusa, de uma maneira muito ampla. Para você, como podemos definir “linguagem”?
Mara Davoli: Disciplinas diferentes oferecem respostas diferentes, não há um conceito definitivo. Podemos definir a linguagem como os limites do mundo de um indivíduo. Isso significa que a linguagem não se resume ao aspecto verbal ou pictórico. É algo relacionado à essência do ser humano, é o que nos distingue dos outros animais.
Malaguzzi se questiona o que é essa essência e argumenta que ela é feita de cem linguagens, e mais cem, e mais cem, como na sua poesia. As linguagens cooperam entre si e se multiplicam.
Paulo Fochi: De que forma a arte pode contribuir para a educação do século 21? E quais são as suas grandes perguntas para os educadores que trabalham com crianças hoje?
Mara Davoli: A arte nos ajuda a enfrentar os desafios existentes, seja neste século, nos anteriores ou nos próximos. Ela é como uma rebelião contra a realidade que conhecemos, pois quem quer mudar o mundo enxerga o que ainda não existe e deveria existir.
Na educação, esses desafios são vitais, especialmente na infância. No campo educacional, há a necessidade de uma revolução do possível, inclusive das pequenas coisas.
Em relação à segunda pergunta, professores, pedagogos e educadores devem ser capazes de fazer perguntas que os ajudem a conviver com as incertezas que trabalhar com educação implica. Eles devem saber viver com a complexidade e o risco de inadequação, estejam no início ou no final da carreira.
Essas perguntas devem garantir que todos os meninos e meninas, de qualquer parte do mundo e origem étnica, tenham o direito de ter direitos. Essa é a certeza de quem trabalha com educação. É um processo contínuo, que deve ir além dos limites das disciplinas específicas.
Assista à entrevista completa com Mara Davoli
Livros que abordam o trabalho do atelierista
Ao longo da conversa, Mara Davoli e Paulo Fochi mencionaram livros que tratam sobre o trabalho do atelierista na Educação Infantil. Dois deles são catálogos de exposições.
O papel do ateliê na educação infantil: a inspiração de Reggio Emilia
- Penso, 2019
A partir da abordagem Reggio Emilia, o livro narra experiências de crianças que interagem com materiais ricos – e como isso impacta na abordagem de creches e pré-escolas para a construção e a expressão do pensamento e da aprendizagem.
L’occhio se salta il muro
- Dirección General de Educación Básica, 1984
Catálogo da primeira exposição organizada pelos educadores de Reggio Emilia.
I cento linguaggi dei bambini
- Reggio Children, 1996
Catálogo da exposição itinerante, inspirada na mostra “L’occhio se salta il muro”.
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Sobre a VI Jornada de Educação Infantil
Realizada em 3 de outubro de 2022, a VI Jornada de Educação Infantil reuniu educadores de prestígio nacional e internacional para debater sobre a importância da criatividade, da arte e das boas perguntas na educação.
O evento foi realizado em parceria entre o Observatório da Cultura Infantil (OBECI) e a Pós Educação Unisinos, com curadoria do Profº Drº Paulo Fochi.
A VI Jornada de Educação Digital foi 100% online e gratuita. Confira as principais ideias e cases discutidos no evento:
>>> A importância das boas perguntas para o protagonismo infantil
>>> Mitchel Resnick: “As crianças precisam desenvolver o pensamento criativo”